Arlette Farge
Algumas de suas Obras
O Sabor do Arquivo (1981)
Nesse livro, Arlette Farge trata com paixão a atividade de pesquisar em arquivos, o título inclusive diz muito sobre o conteúdo da obra, ela descreve sensações, emoções, conta-nos da dor no ombro por estar a tanto tempo copiando um arquivo até a disputa pelo melhor lugar da biblioteca, de fato tudo que envolve sua atividade nos arquivos da Biblioteca de Arsenal.
Farge nos fala sobre os microfilmes, uma alternativa útil para a conservação dos arquivos mais desgastados, porém, para ela, essas fotocópias retiram um pouco de vida dos arquivos, já não é mais possível tateá-los e sentir os vestígios do passado. A autora também nos conta sobre a cansativa rotina de ir à biblioteca e passar horas a fio apenas copiando tudo aquilo que está num arquivo, sem resumir, sem mudar nada, apenas copiando integralmente o conteúdo para se debruçar sobre ele posteriormente para aí sim formular interpretações.
“O sabor do arquivo passa por esse gesto artesão, lento e pouco rentável, em que se copiam textos, pedaço por pedaço, sem transformar sua forma, sua ortografia, ou mesmo sua pontuação. Sem pensar muito nisso. E pensando o tempo todo.”
A autora aborda a forma com que os registros policiais trazem a tona uma cidade caótica, cenas da vida urbana, histórias e depoimentos produzidos por acusados e acusadores, onde não se pode saber o que é ou não real, são defesas e acusações, que muitas vezes carregam mais intensidade do que verdades, mas ainda assim evidenciam hábitos daquela sociedade, mesmo quando não se sabe qual a “verdade” nos depoimentos ainda assim são registros de pensamentos que muito se ligam às relações sociais e de poder do período.
É essa característica dos registros policiais que pode trazer à tona as mulheres daquele período, sem torná-las um personagem à parte como muitas vezes se faz na historiografia, elas estavam lá fazendo parte da sociedade. Nos arquivos policiais a mulher está presente, incidentes de todo tipo eram registrados e elas estavam lá fazendo parte da mesma sociedade que os homens, mas sofrendo pelas diferenciações sexuais, que muitas vezes são deixadas de lado pela história, mas que conduziam suas vidas.
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Os registros muito nos mostram sobre sua existência naquele período, os arquivos deixam de lado estereótipos, apenas registram suas queixas e seus depoimentos, trazem à superfície sua forma de pensar e de reagir aos acontecimentos daquela sociedade. No decorrer da obra, Farge fala sobre as dificuldades encontradas para se examinar um arquivo: as partes faltando, os rasgos, manchas e tudo que acaba apagando parte daquele registro; nos apresenta os empecilhos que podem existir e como muitas vezes é difícil contorná-los, expõe sua experiência no trabalho com os arquivos e nos apresenta os processos que segue em busca do objeto que pretende estudar. São experiências que servem como dicas ou como incentivos, são formas de se abordar um arquivo, de se conduzir uma pesquisa que depende desse tipo de fonte, relatos como trechos de cartas e registros curiosos que nos instigam à pesquisa.
História da vida privada, vol. 3
(1986)

"Para uma família plebeia é comum preservar a própria honra em meio a conflitos em que preponderam violências, pancadas, roubos e ainda má-fé e trapaças, é um meio de existir e de frustrar a palavra dos outros."
Nesta obra Arlette Farge participa escrevendo o capítulo "Famílias, a honra e o sigilo", onde a autora discorre sobre a constituição familiar, social e as condições de vida da Paris do século XVIII.
Nesse período era comum a imigração das áreas rurais para a cidade em busca de emprego, situação que levava à separação de famílias, inclusive ao abandono de crianças na capital e entrega dos filhos a nutrizes (de 21 mil crianças nascidas anualmente, 20 mil são entregues a uma nutriz). Tais condições levam a crer que não havia uma família como popularmente se imagina.
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Porém segundo Farge a constituição familiar de fato existia, fragmentada mas ainda assim presente, para abordar tal questão a autora se utiliza de registros de incidentes com mortes e o processo de reconhecimento dos corpos por parte de familiares, cartas de despedida enviadas por aqueles que foram condenados pelo tribunal revolucionário, entre outros fatos que nos apresentam a formação familiar do período.
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A autora também fala sobre questões habitacionais e a forma com que a população é distribuída em péssimas moradias, como por exemplo os prédios de apartamentos parisienses, onde tudo é habitado, os espaços usados ao máximo; trata acerca da honra e como ela é importante para vida dos parisienses, dos pobres aos ricos, o que se comprova pelo fato de que a população muito importunava a polícia com queixas domésticas, injúrias e todo tipo de questão que ferisse de algum modo sua honra, tais acontecimentos que muitas vezes levavam a conflitos graves.
Nesse sentido, Farge aborda as lettres de cachet, tema tratado também no livro A desordem das famílias - As lettres de cachet dos arquivos da Bastilha, escrito em conjunto com Foucault. Lettre de cachet trata-se de uma forma arbitrária do rei exercer sua autoridade e de famílias manterem sua honra intacta. Esse tipo de denúncia excluía a necessidade de um julgamento e de um processo judiciário (que muito desgastaria a imagem de qualquer família envolvida), o rei recebia o pedido e deliberava suas ordens, com tudo ocorrendo em sigilo, longe dos olhares de vizinhos ou quaisquer pessoa que pudesse se interessar a difamar a honra dos envolvidos. Assim, o pedido de prisão através da lettre de cachet era tido como um meio de conservar a honra e a privacidade familiar.
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Para uma família plebeia é comum preservar a própria honra em meio a conflitos em que preponderam violências, pancadas, roubos e ainda má-fé e trapaças, é um meio de existir e de frustrar a palavra dos outros.
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História das mulheres no Ocidente: do Renascimento à Idade Moderna (1994)

Nesta obra, Arlette Farge participa de alguns capítulos, é um trabalho que pretende evidenciar o papel da mulher nas sociedades, papel esse muitas vezes subestimado, sendo elas, de forma proposital, colocadas como personagens não atuantes ou então secundários de toda nossa história. Tal livro nos apresenta muito além da forma de vida das mulheres, suas realidades e etc, também trabalha em apresentar as relações sociais entre os sexos, a influência dos discursos sobre suas vidas, a tensão entre homens e mulheres.
São abordadas questões desde o cotidiano feminino até sua participação no ambiente políticos, é uma obra que busca evidenciar o papel feminino como agente da História e não apenas como objeto, é uma busca por dissociar a mulher do estereótipo que lhe descreve apenas como frágil, dominada pelo homem e oprimida a ponto de não ser um personagem atuante, pois pelo contrário, as mulheres sempre exerceram papel fundamental na história, muito além dessas concepções que a descrevem como submissa e sem voz, arquétipos que buscam diminuir sua existência, apagar seu real papel na história da humanidade.
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Em seu capítulo "Agitadora notórias" a Arlette Farge trata da presença ativa das mulheres em grandes manifestações sociais na época moderna e revolucionária. Os registros de grande confusões populares mostram a forte presença feminina, em manifestações por alimentos, religiosas, antifiscais e políticas,
No decorrer do texto Farge aborda os motivos que levavam tantas mulheres aos motins, como era esse processo e sua participação, a presença dos filhos, as relações entre os sexos em tal contexto e também como se dava a volta à vida cotidiana.
"Os homens retomam o seu trabalho e as suas atividades quotidianas: ninguém levanta problemas a propósito do seu regresso: eles retomam o seu lugar na cidade. As mulheres fazem a mesma coisa, mas não é exatamente o mesmo, uma vez que voltam a funções habituais de que a parte civil e política está ausente, aquele que tinham assumido ao revoltar-se, mas que não lhes pertence."
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Lugares para a História
(1997)

“Isso começa de maneira simples: como o historiador, que, por seu ofício, está encarregado de dar a uma sociedade sua memória, seus laços com seu passado a fim de que possa viver melhor com seu presente, como o historiador pode dar conta do sofrimento? Como o trata? O que faz com as palavras encontradas que exprimem a dor, que sentido ou que recusa de sentido lhes dar e, sobretudo, como pode ou deve escrever essas suspensões trágicas da felicidade?"
Nesta obra Arlette Farge trata da dor, do sofrimento, da guerra e violência, fatos que estão imersos dentro do dinamismo social e causam rompimentos, deixam marcas, provocam mudanças sociais e políticas, de fato pertencem à história e fazem parte da palavra dos oprimidos.
Para a autora ter esses registros do sofrimento e evidenciá-los é trazer de volta à tona existências que são verdadeiras moradias da história, nesse mesmo sentido Farge pensa a cerca do lugar da história nesses meios, seu papel de questionar tais mecanismos de violência tanto no passado quanto no presente.
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Ademais Farge aborda diversas questões teóricas envolvendo a relação entre a história e seus objetos de estudos, os processos sociais envolvidos, a necessidade de revisitar e repensar o passado constantemente, entre outros pontos que refletem sobre a história e sua relação com a sociedade do passado, do presente e com todos os conflitos sociais e rompimentos vivenciados.
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