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A presente entrevista foi realizada por Elisa Cárdenas (pesquisadora do Departamento de Estudos dos Movimentos Sociais do Centro Universitário de Ciências Sociais e Humanidades da Universidad de Guadalajara) e Veronique Hebrard (historiadora do Centro de Pesquisas da América Latina no Mundo Ibérico da Universidade de Paris I), sendo traduzida e adaptada pelos estudantes do curso de História da Universidade Federal da Fronteira Sul - campus Chapecó, Anderson Luiz Malacarne e Gabriel Vaz, para a matéria de Teoria da História III, ministrada pelo professor Dr Ricardo Machado.

Com que objeto e com quais objetivos, uma entrevista com Arlette Farge

Arlette Farge, historiadora francesa formada na escola dos Annales, tem privilegiado o estudo das classes populares, afirmando o seu papel ativos na História. Trabalhando principalmente a partir de fontes judiciais e frequentemente do ponto de vista da microanálise, Farge se interessou pelas estratégias populares de apropriação do espaço urbano, bem como pela palavra, até mesmo pelas menores, e pelas emoções dessa mesma população, tanto no individual quanto no coletivo. 

Surge daí, a sua reflexão sobre a opinião pública do século XVIII, bem como a sua exploração particular da relação entre o historiador e as suas fontes. Seu  livro Des lieux pour l'histoire, uma reflexão ética e metodológica sobre objetos históricos pouco explorados até agora: o sofrimento, a violência, a guerra, constitui o ponto de partida desta entrevista:

Elisa Cárdenas: “Há uma palavra que está presente em todos os prefácios dos seus livros: a palavra arquivo. Qual é a sua relação com os arquivos? Por que, por exemplo, você escolheu trabalhar com as fontes judiciais do século XVIII? Qual lugar você atribui ao arquivo como parte de seu trabalho como historiadora? “

 

Arlette Farge: “Quanto à escolha das fontes judiciais do século XVIII, não foi complicado. A princípio, é um tema de tese ministrado por um professor, que na época era Robert Mandrou. Mas tampouco é uma escolha aleatória, porque quando ele me deu o tema, também afirmou que aqueles arquivos  nunca tinham sido abertos e eu acho que saber que existe um arquivo que ainda não foi aberto é um incentivo para quem está começando. Enfim, comecei tarde, porque segui um caminho um tanto complicado, porque não estudei história; eu estava vindo da faculdade de direito, estava me orientando de uma forma diferente, e então vou ver aquele professor que me fala de arquivos policiais ainda não explorados e que me leva ao Arquivo Nacional. Acho que muitas coisas se encaixam e se definem no primeiro gesto, em abrir as caixas pela primeira vez. 

Então, a escolha se deu por áreas de trabalho que foram muito importantes naquela época: nos anos 1979-80 faziam-se investigações coletivas sobre a marginalidade, a prisão, a polícia, sobre normas e transgressões; muito rapidamente éramos vários trabalhando no arquivo judicial, com o entusiasmo das investigações coletivas que já não existem mais. As iniciativas de trabalho coletivo eram muito mais presentes naquela época do que vemos atualmente. Esta é a segunda razão: o apoio coletivo de pessoas que, em outras partes da província, também trabalham sobre a marginalização, o desvio das normas, a pobreza, etc. 

E aí vem o terceiro encontro, que é mais pessoal, no qual me dou conta de que, claro! Será possível fazer estudos muito interessantes com esse arquivo: uma série de estudos sobre criminalidade, estudos sobre prisão, sobre reclusão. Mas logo me dou conta de que é um arquivo tão… rico, que diz muitas outras coisas. Esse material constitui uma fonte excepcional, com ele a história pode ser interrogada de outra maneira. Porém, naquela época, eu ainda não tinha uma consciência muito clara disso, mas ao escrever Vivre dans la rue à Paris au XVIIIº siècle, desenha-se através das fontes um espaço público que nasceu naquele período, e ali vejo muito mais coisas além de uma relação estrita com os estudos tradicionais sobre a criminalidade. Acontecimentos pequenos, registros ínfimos estão ali; um desses pode ser usado para extrair o conteúdo informativo (que logo tem de ser interpretado) que poderia me oferecer muito sobre modos de vida e de pensamento que antes eram pouco conhecidos. Eu insisto: no início foi o acaso, o encontro com alguém, depois tem o aspecto coletivo e finalmente o encontro pessoal. Essas são as três dimensões.”

 

Veronique Hebrard: “Visto a importância que você dá às fontes em seu trabalho, pode-se perguntar o que se deu primeiro: foi talvez a escolha de determinados atores em um determinado momento, ou foi o encontro com as fontes que orientou essa escolha?”

 

Arlette Farge: “Ambas as coisas, porque no início houve uma escolha que consistia em eu querer trabalhar sobre os comportamentos populares e sobre os indivíduos que não puderam escrever. Então, a meu ver, os atores sociais que estavam mudos agora estavam ali por meio da polícia; isso levantou o problema de que uma passagem pela polícia era apenas um prisma [uma perspectiva], uma tela. Mas, ao mesmo tempo, havia a impressão (e depois tive que trabalhar sobre essa impressão) de perceber uma realidade que nunca havia sido vista. E então voltava-me àquela frase: ‘você vai abri-los pela primeira vez’; eu queria estar à altura daquela ‘primeira vez’ e alimentar uma reflexão que fosse além do descritivo ou do anedótico.” 

 

Veronique Hebrard: “Você sentiu, antes de abrir o arquivo, que haveriam informações desse tipo?” 

 

Arlette Farge: “Sim. Eu havia escolhido um tema curioso que era o dos ladrões de alimentos. Acredito, falando honestamente, que eu não tinha o interesse em trabalhar sobre grandes criminosos. E depois quis trabalhar nessa fonte, não pelo que me indicava – como dizia há pouco – sobre o ato criminoso, mas sobre uma população que não consegui encontrar em outro lugar, através de outros documentos. Acho que a ideia do ladrão de comida já ia um pouco nesse sentido.”

 

Elisa Cárdenas: “Precisamente, ao longo de todo o seu trabalho, tem-se a impressão de que você tentou destacar as palavras daquelas pessoas, de uma certa forma sem palavras, que tentou restaurar seus papéis de atores na história. A iniciativa não é habitual: em geral encontramos as falas de quem já costuma ter a palavra ou ainda de quem escreveu. Nesse sentido, você diz (em relação à sua própria maneira de proceder): ‘É para encontrar a palavra das pessoas com menos recursos, daqueles que não sabiam escrever e de quem encontramos os vestígios das palavras que proferiram através dos arquivos da polícia’. Precisamente, desse ponto de vista, como você, como historiadora, aborda essa palavra quando encontra tais vestígios?”

 

Arlette Farge: “Não é algo que seja feito facilmente, pois penso que o trabalho do historiador é um trabalho muito solitário, consequentemente é uma experiência pessoal de reflexão solitária  acerca de suas fontes; por outro lado, não podemos esquecer que fazemos parte de uma disciplina histórica, de um corpo profissional; no meu caso, o das historiadoras e historiadores franceses. Em certa época  éramos vários os que trabalhavam sobre a história das mentalidades, sobre os pobres, a história da alimentação, da sexualidade e sobre a história das mulheres que já estava emergindo. Então você era enquadrado dentro de um movimento. Mas logo entendi muito bem até que ponto uma disciplina ‘devora’ você e te absorve; como o campo histórico está de tal forma marcado por professores, corpos profissionais, etc., de tal forma que será necessário combater internamente. É aí que os encontros transversais se tornam importantes para mim; Penso no encontro com Michel Foucault, que foi certamente excepcional e importante para mim. Da mesma forma, tendo trabalhado com Jacques Rancière no seu grupo Les Révoltes Logiques, havia compreendido que não podia trabalhar sobre as práticas sociais dos homens e das mulheres do povo sem também compreender o mundo do seu pensamento, do seu imaginário. 

Antes de chegar a escrever Dire et mal dire [Dire et mal dire. L’opinion publique au XVIIIº siécle] e meu trabalho sobre a opinião pública, escrevi La vie fragile [La vie fragile. Violence, pouvoirs et solidarités à Paris au XVIIIº siècle], que ainda cabe no campo do estudo dos comportamentos, mesmo quando já começa uma reflexão sobre o pensamento, sobre as formas de pensamento. Mas, como encontrar tudo isso no arquivo? É como, ‘como encontrar o silêncio?’ Me motivava a ideia de que o povo não estava somente na precariedade, não era apenas miserável, que nada ainda havia sido falado sobre as construções intelectuais dessa população e que  também nunca havia sido falado dela em termos de construção intelectual. Devolver-lhes a palavra é uma coisa, devolver o seu pensamento é essencial. Ou seja: ir atrás das práticas sociais de pensamento e de linguagem, dos modos de expressão, das formas de não se deixar enganar a respeito daquilo que lhes aflige. Todos pensam, pensam nos acontecimentos e vão à cidade para saber mais sobre eles. E, a partir da ‘curiosidade pública’ e pelo que vi em toda aquela agitação constante de Paris (vi para onde as pessoas iam e porquê) foi como , finalmente, procurei indagar o sentido de ‘o que é um pensamento’. 

O caminho fica então mais solitário porque, a partir desse momento, os estudos sobre a marginalidade, o desvio da norma, também diminuem um pouco; já não se fazem muitas investigações coletivas, deixa-se de trabalhar assim. Então cada um segue seu caminho. Por meio de palavras, há eventos que podem ser identificados com precisão. Certos historiadores podem ser céticos quanto à existência de ‘acontecimentos de palavra’; no entanto, as fontes nos informam sobre eles.” 

Elisa Cárdenas:: “O que as reflexões de Michel Foucault e Jacques Rancière  contribuíram para você?”

 

Arlette Farge: “Quanto ao Rancière, era algo muito intelectual. Fizemos parte de um grupo de reflexão em torno de sua revista Les révoltes logiques. Participei desta revista, em torno de reflexões com verdadeiro compromisso político; não militantes no sentido em que se diria que a história das mulheres foi militante, mas no sentido intelectual e político. O que mais me influenciou foi o livro La nuit des prolétaires, de Jacques Rancière, talvez mais do que a aventura de Les révoltes logiques. 

O encontro com Michel Foucault é diferente, é fortuito: um dia recebi pelo correio um pacote de documentos de arquivo com uma carta anexada de Michel Foucault. Naquela época, eu não assistia a seus seminários. Evidentemente já o havia lido, mas não assistia a seu seminário. Na carta que acompanhava o pacote de lettres de cachet [Ordens reais de prisão ou exílio], Foucault pedia minha opinião sobre o assunto. Assim começou nossa colaboração. Porque ele tinha lido Le vol d'aliments e  Vivre dans la rue, e a abordagem havia lhe interessado. No início é um encontro improvável que se organiza em torno de uma fonte, de um tema de reflexão e também, graças à liberdade deste homem filósofo e homem de compromisso. 

Diante do documento de arquivo, Michel Foucault possui uma grande sensibilidade estética, o que me ensina muitíssimas coisas sobre uma espécie de relação direta com o texto. 

Ao contrário do que se lê em seus livros ou do que sempre lhe foi criticado, Foucault tem uma espécie de relação vibrante com o arquivo, sobre a qual naturalmente discutimos muito, antes de escrever Le désordre des familles.  Também trabalhamos com discrição, visto que a relação de Michel Foucault com os historiadores era muito difícil. Esse encontro é, portanto, uma história particular, uma história a margem. Aprendi muito do trabalho com ele, mas a relutância dos historiadores imprime ao livro limitações que ele não teria - aliás, íamos fazer outro livro mais tarde - se não tivesse ocorrido essa história do desentendimento entre Foucault e os historiadores. Para Foucault eu representava justamente uma historiadora não integrada no universo oficial dos historiadores, situada à margem, e por isso mesmo foi uma sorte.”

 

Veronique Hebrard: ‘Justamente, o que chama a atenção quando você se refere a pessoas que participaram de sua trajetória intelectual, seja Foucault ou Michel de Certeau, é que sempre afirma ter os conhecido por intermédio de documentos de arquivo. O que gostaríamos de saber é em que medida essas pessoas, já que o encontro se deu por meio do documento, lhe guiaram, com seus métodos, a leitura que você faz das fontes: em particular Foucault e essa vontade de romper com toda uma série de convenções, seja sobre objetos muito precisos, seja sobre a própria maneira de compreender o documento - e você dizia há pouco - de saber ir até o documento e tentar tirar dele coisas novas.”

 

Arlette Farge: “Acho que toda vez que há um encontro as coisas acontecem nos dois sentidos porque, no fundo, o próprio fato de ter escolhido o arquivo policial já implica no encontro com outras pessoas, na surpresa e na conivencia. No fundo, o que me impressionou no encontro com Michel Foucault foi encontrar uma pessoa tão inteligente, e também tão cortês, que com ela eu crescia, pois é alguém que dá, que tem a generosidade de compartilhar inteligência, mas uma inteligência livre. Nunca me sentí discípula de Foucault. E então, nas sucessões e nos problemas complicadíssimos que surgiram após sua morte, nunca me senti desconfortável. Não me sinto uma discípula, mas sim alguém próximo, o que me permite ir em busca das ‘ferramentas’ em outro lugar.” 

 

Veronique Hebrard: Penso que, se nos chamou a atenção, é porque, no campo da historiografia latino-americana, um dos aspectos em que há muito a ser feito é o da leitura de documentos em múltiplos níveis. No meu modo ver, ao encontro do que você faz, não existem apenas campos próximos, mas  também há isso, essa vontade de não somente voltar às fontes, mas também ir  àquelas que ainda não foram exploradas. E a vontade, especialmente por determinados períodos, de fazer falar aquelas pessoas privadas de palavra. É uma questão recorrente: como devolver a palavra a populações (escravos, analfabetos) que não deixaram vestígios escritos? Quando leio seu trabalho,  leio a prova de que é possível uma leitura dos documentos em diferentes níveis, para dar evasão a essa palavra. 

 

Arlette Farge: Dar a palavra a pessoas do passado, que não puderam escrever, permite dar a palavra as pessoas de hoje. Existe uma forte interação entre trabalhar história e refletir sobre o presente. Quanto mais o relato histórico se baseia nas palavras do povo, maior é a possibilidade de falar às pessoas de hoje, de interpretar a atualidade. 

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Veronique Hebrard: Em algum momento, quando fala da dificuldade de abordar esses tipos de temas, em particular o sofrimento dos pobres, você evoca justamente o risco de cair em uma espécie de exotismo. Mas também é verdade que tratar, através talvez da empatia, de devolver a palavra a essas pessoas, significa também devolver uma memória às pessoas de hoje. Porque você diz muito bem que essa palavra pode parecer marginal ou exótica, mas, no entanto, bem analisadas as coisas, é o alicerce de nossa sociedade. E devolver a memória aos marginalizados de hoje e que são pessoas que se dizem (ou que os outros dizem) sem história é muito importante; é mostrar que as chamadas populações marginais ou marginalizadas possuem sua própria racionalidade, sua própria memória.

 

Arlette Farge: Em relação às fontes e a forma de estudá-las, é necessário um rigor muito grande.. É um assunto preocupante, porque sei que também podem ser feitos trabalhos falsificados com os arquivos judiciais. O documento não é uma prova. Jamais me permitirei, como agora acontece com alguns arquivos russos, ou outros, exibir um documento dizendo ‘tenho provas de que...’. É necessário ter métodos de interpretação rigorosos, sem eles você cai em anedotas ou em interpretações errôneas, o que é grave. É importante que você sempre tenha um para justificar. Às vezes é um pouco tedioso justificar os conceitos, etc., mas é essencial porque quanto mais rigorosos somos - em última instância, isso exige mais rigor do que a história das batalhas - podemos reconstituir melhor uma memória complexa e contraditória. 

 

Elisa Cárdenas: E exatamente quais seriam - se você quiser nos falar um pouco sobre isso - os riscos que existem quando se trabalha com esses tipos de atores, sobre o tipo de problemáticas que você escolheu para trabalhar, no momento de escrever história e dentro de sua prática como historiadora? 

 

Arlette Farge:  Existem riscos, coisas que podem se tornar rapidamente um estopim completo da dispersão de dados, porque você dispõem de um documento entre tantos outros contraditórios. Existe efetivamente um risco de dispersão, (até) de explosão do relato histórico. Então a construção do relato se torna mais complicada. Há também um outro risco, o do desviar-se dos métodos a um ponto que pode levar ao negacionismo, ao revisionismo: isto é, que seja exibido até os mínimos detalhes de um documento que comprovaria determinado fato, esquecendo de outros que comprovam outros fatos. Inverter as coisas a tal ponto que, por um lado, a história se torna incompreensível e, por outro, sucumbe ao peso das anedotas desinteressantes ou que então são utilizadas ​​de forma desonesta. Ou então se voltaria, voltaríamos, como temia Pierre Laborie, a um relato positivista, objetivado à moda antiga. Não é nada fácil de elaborar e creio que é necessário um grande rigor.

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Veronique Hebrard: Isso levanta, justamente, a relação com a micro-história. Com tudo isso  e com o risco da análise estagnar-se, penso que podemos postular que a microanálise pode ser um meio de articular aquilo que é da ordem do extremamente pequeno, mas que se situa num ponto de enfoque mais global, seja para pensar um pertencimento nacional, ou então uma situação mais ampla. 

 

Arlette Farge: Sim, os trabalhos que faço são de alguma forma micro-históricos, embora haja algo na micro-história que me questiono, que é a falta de explicitação do que está em jogo, no sentido de que, em alguns trabalhos, se evita a questão crucial que é a do conflito e da relação de forças. Muito se busca evitar essas questões, e como já não existem as antigas categorias para nomeá-las, a micro-história se estruturou de tal forma que evita até mesmo ter que nomeá-las, mesmo que de outra maneira. Saber nomear, encontrar um novo vocabulário, retomar o antigo, falar sobre o conflito, sobre as diferenças de classe, sabendo perfeitamente que marxismo é uma palavra, esse é um questionamento importante. É bom construir tendo em mente a ideia de saber nomear as relações de forças, dizê-las, porque enfim, as formas de dominação realmente existem. Vamos encontrar outras palavras, e quando tivermos as encontrado, encontraremos ainda mais coisas nos arquivos e teremos a possibilidade de mudança constante de perspectiva. 

 

Veronique Hebrard: Isso vai em direção a algumas de suas reações no seminário [seminário de Arlette Farge e Pierre Laborie, “Historiens et phénomenes d’opinion. L’évenement et sa réception, XVIIIº”] sobre o fato de que não se deve ter medo de falar sobre relações de classe. 

 

Arlette Farge: Sim, eu acharia estimulante ter um seminário sobre palavras para uma nova investigação histórica. Acredito muito na denominação, no poder das palavras. Quando se encontra uma palavra para definir algo, é importante. Quando eu trabalhava sobre a relação entre mães e filhos e estávamos imersos nos grandes debates “não os querem - os querem”, a respeito dos séculos XVIII e XIX, procurei uma palavra para qualificar o sentimento em relação à infância, a palavra suplicação. Graças a isso, compreendi muitas coisas sobre as relações entre pais e filhos no século XVIII. Um seminário sobre palavras ou metáforas seria interessante; de fato, quando leio a obra de um historiador, presto muita atenção em seu vocabulário, pois penso que é aí que muitos conceitos são compreendidos. Se tivermos que pensar de outra maneira, teríamos que aprender outras palavras. Existem palavras difíceis de utilizar na atualidade, como  por exemplo, dominação, opressão; afastando-as um pouco do campo da história das mulheres foi possível trabalhar sobre as relações entre os sexos de outra maneira. Então, às vezes se ganha com isso, porém, segue sendo essencial o nomear, descobrir outros termos que requerem novas noções. 

 

Elisa Cárdenas: Lendo seu último livro, que nos chamou muito a atenção, nos pareceu que há uma tentativa de inverter a leitura de certos objetos históricos. Inversão que diz respeito aos próprios objetos, seja a guerra, a violência, o sofrimento: na medida em que postula que tanto a guerra quanto a violência são o produto de uma escolha racional feita por uma sociedade em um determinado momento, você recusa que possa ser uma fatalidade. 

 

Arlette Farge: Sim. Como não se surpreender em relatos históricos, no que diz respeito justamente à guerra (não estou falando das guerras do século 20, pois acho que a partir de 1914 a visão do historiador mudou um pouco), com o fato de que as guerras não sejam nunca analisadas jamais como uma escolha, como momentos precisos em que mecanismos racionais nos permitem pensá-las? Uma sociedade pensa em guerra. Se é possível pensar os mecanismos que levam à guerra, é por que essa não é tão inelutável nem tão necessária como sempre nos é apresentado. Dentro da análise desses mecanismos racionais que precedem a guerra, que presidem a guerra e a forma com que esta é feita em cada vez (porque também acredito que não existe uma barbárie em geral, nem uma crueldade em geral, mas sim maneiras de se fazer andar mecanismos de crueldade e barbárie que são pensados em cada momento de guerra), o historiador pode refletir e quem sabe antecipar o futuro. Se é possível explicar mecanismos poderosos o suficiente para fazer com que eventos como guerras tenham sido decididos, pode-se explicar que é possível desfazê-los; a ideia, de certa forma, é essa. Esses grandes acontecimentos, guerras, epidemias, motins, trouxeram sofrimentos específicos e os indivíduos usaram formas específicas de expressão para contá-los e conheciam os momentos precisos em que puderam fazer de tal forma que esse sofrimento fosse ou não acolhido pelo conjunto social. Por meio dos grandes acontecimentos traumáticos, pode-se trabalhar a própria constituição desses sentimentos de solidariedade, de desinteresse, sobre silêncio. Pode-se também restaurar os termos da palavra enfermo. É algo que não se diz da mesma maneira no século XIX e no século XVI, durante as guerras de religião, por exemplo, e que também não se vive da mesma forma. E, além disso, esses eventos têm lugar dentro de formas específicas de sociedade: quando, por exemplo, durante as guerras religiosas, as mulheres fazem esse ou aquele gesto, dependendo se são protestantes ou católicas, sobre os corpos de crianças despedaçadas, não quer dizer a mesma coisa, e tudo isso nos dá informações sobre a relação com a vida e a morte. E se colocássemos todos esses gestos juntos uns dos outros, poderíamos esperar ver que este ou aquele tipo de barbárie está ligado a este ou aquele motivo; assim deixaríamos de ideias invariáveis ​​como "a guerra e seu tribunal de violência", "a guerra e sua procissão de violações". O sofrimento não é invariante, mas se projeta em um universo social onde adquire ou não um sentido, e onde uma obra está sendo construída na sua própria destruição. O historiador pode tentar compreender esse universo. O sofrimento, por exemplo, provoca memórias, mas também provoca um futuro, uma ideia de futuro. Tratam-se de mecanismos sociais extremamente fortes e seria possível fazer um trabalho que se aprofunde ainda mais nessas formas de sofrimento. 

 

Veronique Hebrard: Tem a ver com o que falávamos há pouco sobre as formas de trabalhar o sofrimento ou a guerra a partir das pinturas de Watteau [Les fatigues de la guerre. XVIIIº siècle. Watteau, Paris, Éd. Gallimard, Coll. Le promeneur, 1996.] Você usou práticas ou métodos de outras disciplinas além da história? 

 

Arlette Farge: Isso raramente acontece. Nesse caso, trabalhei pela primeira vez sobre um pintor. Trabalhar com a pintura é algo que nunca havia posto em prática. Algo com que trabalho, sem falar sobre e sem teorizar, é com o cinema, com a escrita cinematográfica e, claro, com a literatura. Nunca havia feito isso com pintura mas tenho vontade,  agora que estou trabalhando com a história da sedução, de estudar Fragonard ou de relacionar cenas pintadas por Greuze ou por Fragonard [Jean-Baptiste Greuze (1725-1805), La malédiction paternelle, La Cruche cassée; Jean Honoré Fragonard (1732-1806), La leçon de musique, La Chemise enlevée] com cenas de rua. 

 

Veronique Hebrard: Quando se olha para sua carreira através de sua obra, percebe-se que começou com século 18, mas sempre há um diálogo permanente entre o trabalho com o passado e a reflexão sobre o presente. E o que particularmente chama a atenção em seu último livro [Des lieux pour l'histoire] é a tomada de posição em relação às situações atuais. Através disso encontramos a questão da emoção: aquela que você mesmo encontra nos documentos e que tenta restituir, quer dizer, a emoção em sentido amplo, e depois a sua própria. Isso lembra as palavras de Foucault que você cita em Des lieux pour

l'histoire: “Não apagar do próprio conhecimento todos os vestígios do querer”. Trata-se de um compromisso em sentido amplo, não apenas político. 

 

Arlette Farge: Não consigo conceber a vida intelectual sem esta posição. Para mim, está implícito na própria posição do intelectual. Não me pergunto se estou deformando o objeto histórico por ter uma certa postura ética. O fato de eu ter sido feminista, ser ainda ou não mais, ter militância ativa ou não, pode ser desvinculado da escrita de livros de história em que se revelam algumas visões éticas do mundo. A posição intelectual é necessariamente algo que lhe obriga a ficar nesses lugares centrais que são os lugares do encontro com um tempo, o nosso tempo, e que, claro, passa por um compromisso de pensamento, pelas palavras que são escolhidas para escrever e pelo objeto histórico que se considera. Este compromisso de pensamento também é ação. O ato de pensar é o ato de projetar sobre uma realidade os meios de interpretá-la para que ressoe de outra maneira, para que se desloque constantemente até outra parte (outra parte de onde viemos e para onde vamos). Para mim, isso é algo realmente muito forte. Em todo caso, o que mais me faz falta é encontrar pessoas com quem compartilhá-lo. E no final das contas, as encontro mais em um público amplo, em uma conferência, do que entre outros intelectuais. 

 

Veronique Hebrard: Não é uma questão de princípios: não se trata de "eu faço isso porque tenho um compromisso". 

 

Arlette Farge: Não, se trata de um princípio universal que engloba tudo. 

 

Veronique Hebrard: É uma abordagem global. Por isso gosto quando você disse em La vie fragile [La vie fragile. Violence, pouvouir et solidarités à Paris au XVIIIº siècle]: “Sempre concebi a minha investigação como um itinerário pessoal e intelectual (...)”.

Se for coerente com essa abordagem, há necessariamente um eco entre o que é o trabalho do historiador diante de seus documentos e sua percepção da sociedade. 

 

Arlette Farge: Sim. Inclusive, vejo com frequência jovens estudantes de doutorado, espantados e desiludidos ao ver como hoje se transmite o conhecimento; quer dizer, como uma espécie de erudição cansada e exaustiva, da qual nada pode ser extraído. Na verdade, acredito que um saber erudito, construído exclusivamente com a sua própria erudição, é um saber que não pode ser dado, que não pode ser transmitido, porque aquele a quem é transmitido deve poder apropriar-se dele para fazer outra coisa. Na transmissão, o que me fascina é que o outro possa se apropriar do conhecimento, de outra maneira. Ao passo que quando o conhecimento é dado assim, puro de todas as implicações, não é possível tomá-lo, não é possível apropriar-se dele. Uma atitude positiva é a daquele que encara a vida e transmite a sua vida intelectual com debates e dúvidas. 

 

Veronique Hebrard: De fato, nas introduções de suas obras você sempre indica "o presente livro é o princípio de tal coisa" e, em suas conclusões, que ele está aberto para outras coisas. Ora, a transmissão do saber consiste também em mostrar a construção do objeto de estudo, em ensinar que a reflexão nunca está terminada, a maneira como você procedeu também denota essa disposição de colocar  o passado e o presente de uma maneira que eles possam se confrontar. 

 

Arlette Farge: Os documentos ajudam a seguir este caminho. O material é tão vivo, até lhe causa obsessão, lhe obriga a buscá-lo. Suponho que, se trabalhasse com outros tipos de materiais, talvez não tivesse a mesma visão. De fato: os documentos me guiam além de si mesmos; no final das contas, me introduzem a campos os quais eu não pensava que iria. Segue sendo uma maneira de pensar de outra forma o acontecimento social.

 

Elisa Cárdenas: Uma pergunta que tem mais a ver com curiosidade. Começamos com seus livros e acabamos atrasadas com relação a suas reflexões atuais. Sobre o que está trabalhando atualmente? 

 

Arlette Farge: Eu trabalho com a equipe de História da Mulher na l’Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales. Acabamos de terminar um livro que será lançado em setembro sobre violência; mas se trata da violência das mulheres e da violência contra as mulheres. Queríamos manejar as duas coisas; pegar ambos os aspectos para desenrolar um pouco o tema. Foi muito difícil, porque a violência sobre as mulheres é mais frequente do que a violência das mulheres. No entanto, a história das mulheres não deve deixar tabus em silêncio e, se a violência das mulheres existe, deve-se ver sobre ela em cada sociedade, desde a Grécia antiga até o século XX. Há de se compreender como uma sociedade vive e pensa de forma cômoda essas duas coisas: violência contra mulheres e violência das mulheres. Como os mecanismos sociais são estruturados. Agora vamos tentar fazer uma história da sedução, porém seria uma história da sedução dentro da história política e religiosa, uma história bastante ampla, que vai além da ordem da vida privada. Minhas reflexões atuais? Por enquanto não tenho! (Elisa Cárdenas:: Não acredito em você!) 

Agora é a saída do livro, as reações que tem havido por parte das pessoas, como a sua, como outras. E, então, é um momento particular onde a pessoa se questiona. Não escolhi um objeto de pesquisa muito preciso. Fora da história da mulher que, está sendo feita porque faço parte de um grupo, pessoalmente ainda não escolhi outro tema. Por um tempo pensei que seria a guerra, mas não creio nisso. Porque parece muito duro para mim. Não que seja difícil intelectualmente, mas emocionalmente difícil. Então, ainda não sei. 

 

Veronique Hebrard: Gostaria de evocar a relação entre o século XVIII em que você trabalha e a América Latina do século XIX, que ainda é uma sociedade do tipo antigo. Além dos problemas que se cruzam, existe entre os dois uma possibilidade de fluxo do mesmo tipo que pode haver entre o passado e o presente. 

 

Arlette Farge: Sim, e devo dizer que, na verdade, incluindo o que diz respeito aos seminários, eu não pensava que campos tão diferentes pudessem se cruzar. Nicole Loraux já havia tido essa ideia. Por fim, ao mesmo tempo estou na expectativa, pois gostaria de ver o trabalho dos alunos que virão depois e também gostaria que eles se expressassem mais. Porque... se querem saber, eu também tenho um certo temor, sempre me preocupei com os efeitos do ensino, de um livro. É algo que sempre abordei com muito cuidado... não que se possa controlar os efeitos, quando se transmite algo, acontece o que eu falei há pouco, as pessoas se apoderam dele. Porém um livro, às pessoas o pegam, reagem como bem entendem, e é claro que passa a ser propriedade delas, mas acho que há efeitos que devemos controlar e um dos efeitos que me causaria maior medo seria o anacronismo, a menos que fosse bem administrado, como Nicole Loraux conseguiu fazer. Penso, creio, a partir daquilo que ouvi no seminário, que isso nunca foi feito, que os alunos também evitam, mas acho que seria de uma inesperada gravidade. O trabalho com as fontes deve ser muito rigoroso; É preciso que nem o prazer intelectual, nem o desejo, nem o compromisso terminem por ocultar, se colocando acima das hipóteses de trabalho.

 

Veronique Hebrard: Na verdade, você não deve cair na armadilha de perder de vista a lógica interna do terreno sobre o qual se trabalha. Que haja ecos de outros tempos, de outros espaços, é importante. Mas é preciso dispor das ferramentas para fazer isso, e não é possível transpor tudo. 

 

Arlette Farge: Penso em algum dia fazer algo mais aprofundado sobre a opinião pública, porque me parece que ainda há muito o que refletir sobre isso e muito a contribuir, sem perder de vista a tensão entre o passado e o presente. 

 

Veronique Hebrard: É justamente nessa tensão que reside a dificuldade. Por um lado, existem essas armadilhas que devem ser evitadas e, por outro, quando se procede como você, mostrando precisamente que os atores à margem também são atores da história, trata-se também de devolver a essas atores sua parte da universalidade.

 

Arlette Farge: O interessante é efetivamente essa mesma tensão. Porém é preciso saber manejá-la e não quero fazer isso de maneira anárquica, pois é um compromisso social. Meu compromisso social seria esse, conservando como marco de grande importância todos os protocolos de veracidade, todas as abordagens rigorosas que permitem dar conta dos fenômenos sociais com o maior exatidão e maior  justiça possível.  

 

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París, 9 de junho de 1997.

Traduzido e adaptado de:

FARGE, Arlette. Historiadora: con qué objeto y con qué objetos, una entrevista con Arlette Farge. [Entrevista concedida a] Elisa Cárdenas; Veronique Hebrard. Espiral, Guadalajara, v. 5, n. 13, p.15-33, setembro, 1998. Disponível em: <https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=13851302>

Este site é resultado de um seminário da disciplina de Teoria da História III, ministrada pelo Prof Dr Ricardo Machado, no curso de licenciatura em História da Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Chapecó. 
Criado por Anderson Malacarne e Gabriel Vaz com a colaboração dos demais membros do grupo. 

 

Contato

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